Houve um tempo em que o ditado supracitado era tido como uma verdade
quase inquestionável. Por sorte, os tempos mudaram e a sociedade, mesmo que
lentamente, tenta acompanhar essas mudanças. Há, sobretudo, mudanças positivas
e negativas. Então reflitamos: em séculos, evoluímos ou regredimos na temática
da violência doméstica contra a mulher?
Para que cheguemos na resposta, são necessárias duas autocríticas
extremamente importantes. No entanto, ao se analisar algo é preciso ter outro
“algo” como parâmetro, por isso digo que é válido refletir sobre a história da
sociedade e o contexto da nossa sociedade contemporânea, assim como também
devemos ter atenção se nós, enquanto indivíduos dotados de personalidades
distintas e únicas, estamos acompanhando as mudanças necessárias ou se ainda
somos os mesmos seres com pensamentos patriarcais enraizados de anos (quiçá,
décadas) atrás, onde a mulher não era vista como uma pessoa dotada de direitos
e deveres, mas como uma posse do marido.
Repare que nas duas críticas é necessária uma análise do todo
(sociedade) e da parte (indivíduo), pois ambos caminham lado a lado. No
progresso moral, não há como uma evoluir sem a outra. É impossível uma
sociedade caminhar a passos largos para o bem, enquanto os indivíduos caminham
para o mal, por exemplo.
E por que não falar do relevante papel religioso nisso? Há pouquíssimo
tempo, uma mulher casada se separar era praticamente uma aberração natural,
beirando a algo diabólico, mesmo que a culpa do divórcio fosse exclusivamente
do marido. Esse é um dos motivos que muitas mulheres viveram uma vida inteira
infeliz. Quantos choros mães tiveram que engolir para que não fossem malvistas
nas missas de domingo? Caro leitor, você consegue dimensionar a dor que cada
mulher sofreu com isso?
Feito as autocríticas e reflexões acima, chegou a hora de dialogar com o
nosso Código Penal Brasileiro que está em vigência desde 1940. É óbvio que fiz
questão de ser mal-educado com ele e dizer sua idade. Caso ainda não tenha
causado o choque que gostaria, aqui vai: nosso código penal tem quase 85 anos!
Mas calma, nem tudo está perdido, pois para preencher as lacunas que nossa
sociedade necessita ao passar dos anos, ele sofre alterações (e falaremos
delas). Além disso, diversas leis especiais são criadas pelo legislador no dado
momento histórico em que assim o julga necessário criá-las, como a lei
11.340/2006 (a famosa “Lei Maria da Penha”).
É natural associarmos violência doméstica somente à agressão física,
como socos e pontapés, pois é mais comum vermos casos nas grandes mídias, assim
como também se torna mais revoltante para quem assiste ou lê a notícia. “PRISÃO
PARA O AGRESSOR, JÁ”! Não discordo da indignação da maioria da sociedade,
principalmente para casos de grande repercussão. No entanto, a própria Lei
Maria da Penha aborda, em seu artigo 7º, 5 formas de violência doméstica e
familiar contra a mulher que passam despercebidos aos olhos dos cidadãos
brasileiros: violência física (já falada aqui), violência psicológica,
violência sexual, violência patrimonial e violência moral. Trocando em miúdos:
agressor não é somente o homem que bate em mulher.
O namorado que ameaça a namorada caso ela termine o relacionamento
(violência psicológica). O marido que força relação sexual com a esposa
(violência sexual). O esposo que se apossa de maneira arbitrária do valor
recebido pela esposa de uma herança (violência patrimonial). O homem que
ridiculariza sua própria esposa na frente de outras pessoas para que ela se
sinta humilhada e assim afete sua autoestima (violência moral). Todos são
agressores, mas em contextos distintos.
Dito isso, precisamos contextualizar a próxima abordagem. A priori, é
necessário ter ciência que existem crimes de ação penal privada, ação penal
pública condicionada a representação e ação penal pública incondicionada. Quero
destacar as duas últimas. Esmiuçando o juridiquês aqui presente: o Estado só
pode punir alguém que comete um crime de ação penal pública condicionada a
representação SE (e somente se, sob pena de nulidade processual) a vítima ou
ofendido(a) prestar sua representação diante da autoridade competente.
Quer um exemplo? Um homem A ameaça agredir um homem B através de uma
conversa de whatsapp caso o encontre pessoalmente. Após isso, o homem B
“nem dá bola” e segue sua vida. O Estado pode punir o homem A? Não, pois o
crime de ameaça (artigo 147 do Código Penal) é um crime de ação penal pública
condicionada a representação. Foi então que o legislador ponderou: e se a
esposa é ameaçada pelo marido, mas tem medo de denunciá-lo?
Outro exemplo de crime de ação penal pública condicionada a
representação é o de lesão corporal (artigo 129 do Código Penal). Todavia, o
Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sua Súmula de nº 542 afirmou: “A ação
penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica
contra a mulher é pública incondicionada”. Em outras palavras, para que o Ministério
Público torne o agressor, réu, NÃO é necessário que a mulher represente contra
o homem.
E, para corroborar com o entendimento já consolidado do Tribunal
Superior, a Lei 14.994/2024 (Lei Anti-Feminicídio) entrou em vigor ano passado
para tornar mais gravosa as penas dos crimes cometidos nesse contexto.
Vamos fazer um exercício. Lembra do exemplo do crime de ameaça do homem
A para o homem B e este sequer representou? A Justiça nada pode fazer, pois B
não representou, correto? No entanto, se este mesmo homem A faz uma nova
ameaça, mas dessa vez para uma mulher C no âmbito da unidade doméstica, ou no
âmbito da família, ou em qualquer relação íntima de afeto, este crime é ação
penal pública incondicionada. Então, agressor, dessa vez você se deu mal.
Ademais, é importante salientar que “ambiente doméstico” e “violência
doméstica” são termos utilizados para, basicamente, dizer que vítima e autor
possuem ou possuíam íntima relação de afeto ou para afirmar que o crime ocorreu
por razão da vítima ser mulher.
Em resumo: se alguém comete qualquer crime contra a mulher, a Justiça tem por obrigação punir o criminoso. A única exceção é o crime de
Perseguição (artigo 147-A do Código Penal), que ainda depende da representação
da vítima mulher.
E onde você entra na história? Você, jovem, adulto ou idoso(a), que por
tantas vezes ouviu seu pai, mãe, avô, avó, tio, tia que “em briga de marido e
mulher, ninguém põe a colher”, o que fazer agora?
Você pode ajudar a combater a violência doméstica de formas simples, mas
extremamente poderosas: ouvindo, acolhendo e não julgando. Muitas mulheres têm
medo de denunciar por vergonha, dependência financeira ou por não se sentirem
amparadas. Oferecer apoio emocional, orientar sobre os canais de denúncia
existentes e, quando possível, acompanhar a vítima até uma delegacia da mulher
pode fazer toda a diferença.
Além disso, denunciar situações que você presencia, reprovar
comportamentos agressivos e grosseiros de seus amigos e defender suas amigas
quando possível são atitudes fundamentais. Agora que você sabe que a vítima não
precisa necessariamente denunciar para que a Justiça comece a agir, você mesmo
pode fazer isso. E não podemos esquecer do papel essencial da educação: é
dentro de casa que se formam os valores que moldam o cidadão. Ensinar os
filhos, desde pequenos, sobre respeito, empatia, igualdade e solidariedade é
uma das formas mais eficazes de romper com o ciclo da violência. Lembre-se: seu
silêncio pode ser cúmplice, mas sua voz — e seu exemplo — podem salvar vidas.
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