quarta-feira, 30 de julho de 2025

“Em briga de marido e mulher não se deve pôr a colher”, mas toda a prataria da casa! E quem se omite, na maioria das vezes, torna-se conivente (e eu posso te provar)

 

 

Houve um tempo em que o ditado supracitado era tido como uma verdade quase inquestionável. Por sorte, os tempos mudaram e a sociedade, mesmo que lentamente, tenta acompanhar essas mudanças. Há, sobretudo, mudanças positivas e negativas. Então reflitamos: em séculos, evoluímos ou regredimos na temática da violência doméstica contra a mulher?

Para que cheguemos na resposta, são necessárias duas autocríticas extremamente importantes. No entanto, ao se analisar algo é preciso ter outro “algo” como parâmetro, por isso digo que é válido refletir sobre a história da sociedade e o contexto da nossa sociedade contemporânea, assim como também devemos ter atenção se nós, enquanto indivíduos dotados de personalidades distintas e únicas, estamos acompanhando as mudanças necessárias ou se ainda somos os mesmos seres com pensamentos patriarcais enraizados de anos (quiçá, décadas) atrás, onde a mulher não era vista como uma pessoa dotada de direitos e deveres, mas como uma posse do marido.

Repare que nas duas críticas é necessária uma análise do todo (sociedade) e da parte (indivíduo), pois ambos caminham lado a lado. No progresso moral, não há como uma evoluir sem a outra. É impossível uma sociedade caminhar a passos largos para o bem, enquanto os indivíduos caminham para o mal, por exemplo.

E por que não falar do relevante papel religioso nisso? Há pouquíssimo tempo, uma mulher casada se separar era praticamente uma aberração natural, beirando a algo diabólico, mesmo que a culpa do divórcio fosse exclusivamente do marido. Esse é um dos motivos que muitas mulheres viveram uma vida inteira infeliz. Quantos choros mães tiveram que engolir para que não fossem malvistas nas missas de domingo? Caro leitor, você consegue dimensionar a dor que cada mulher sofreu com isso?

Feito as autocríticas e reflexões acima, chegou a hora de dialogar com o nosso Código Penal Brasileiro que está em vigência desde 1940. É óbvio que fiz questão de ser mal-educado com ele e dizer sua idade. Caso ainda não tenha causado o choque que gostaria, aqui vai: nosso código penal tem quase 85 anos! Mas calma, nem tudo está perdido, pois para preencher as lacunas que nossa sociedade necessita ao passar dos anos, ele sofre alterações (e falaremos delas). Além disso, diversas leis especiais são criadas pelo legislador no dado momento histórico em que assim o julga necessário criá-las, como a lei 11.340/2006 (a famosa “Lei Maria da Penha”).

É natural associarmos violência doméstica somente à agressão física, como socos e pontapés, pois é mais comum vermos casos nas grandes mídias, assim como também se torna mais revoltante para quem assiste ou lê a notícia. “PRISÃO PARA O AGRESSOR, JÁ”! Não discordo da indignação da maioria da sociedade, principalmente para casos de grande repercussão. No entanto, a própria Lei Maria da Penha aborda, em seu artigo 7º, 5 formas de violência doméstica e familiar contra a mulher que passam despercebidos aos olhos dos cidadãos brasileiros: violência física (já falada aqui), violência psicológica, violência sexual, violência patrimonial e violência moral. Trocando em miúdos: agressor não é somente o homem que bate em mulher.



O namorado que ameaça a namorada caso ela termine o relacionamento (violência psicológica). O marido que força relação sexual com a esposa (violência sexual). O esposo que se apossa de maneira arbitrária do valor recebido pela esposa de uma herança (violência patrimonial). O homem que ridiculariza sua própria esposa na frente de outras pessoas para que ela se sinta humilhada e assim afete sua autoestima (violência moral). Todos são agressores, mas em contextos distintos.

Dito isso, precisamos contextualizar a próxima abordagem. A priori, é necessário ter ciência que existem crimes de ação penal privada, ação penal pública condicionada a representação e ação penal pública incondicionada. Quero destacar as duas últimas. Esmiuçando o juridiquês aqui presente: o Estado só pode punir alguém que comete um crime de ação penal pública condicionada a representação SE (e somente se, sob pena de nulidade processual) a vítima ou ofendido(a) prestar sua representação diante da autoridade competente.

Quer um exemplo? Um homem A ameaça agredir um homem B através de uma conversa de whatsapp caso o encontre pessoalmente. Após isso, o homem B “nem dá bola” e segue sua vida. O Estado pode punir o homem A? Não, pois o crime de ameaça (artigo 147 do Código Penal) é um crime de ação penal pública condicionada a representação. Foi então que o legislador ponderou: e se a esposa é ameaçada pelo marido, mas tem medo de denunciá-lo?

Outro exemplo de crime de ação penal pública condicionada a representação é o de lesão corporal (artigo 129 do Código Penal). Todavia, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), em sua Súmula de nº 542 afirmou: “A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada”. Em outras palavras, para que o Ministério Público torne o agressor, réu, NÃO é necessário que a mulher represente contra o homem.

E, para corroborar com o entendimento já consolidado do Tribunal Superior, a Lei 14.994/2024 (Lei Anti-Feminicídio) entrou em vigor ano passado para tornar mais gravosa as penas dos crimes cometidos nesse contexto.

Vamos fazer um exercício. Lembra do exemplo do crime de ameaça do homem A para o homem B e este sequer representou? A Justiça nada pode fazer, pois B não representou, correto? No entanto, se este mesmo homem A faz uma nova ameaça, mas dessa vez para uma mulher C no âmbito da unidade doméstica, ou no âmbito da família, ou em qualquer relação íntima de afeto, este crime é ação penal pública incondicionada. Então, agressor, dessa vez você se deu mal.

Ademais, é importante salientar que “ambiente doméstico” e “violência doméstica” são termos utilizados para, basicamente, dizer que vítima e autor possuem ou possuíam íntima relação de afeto ou para afirmar que o crime ocorreu por razão da vítima ser mulher.

Em resumo: se alguém comete qualquer crime contra a mulher, a Justiça tem por obrigação punir o criminoso. A única exceção é o crime de Perseguição (artigo 147-A do Código Penal), que ainda depende da representação da vítima mulher.

E onde você entra na história? Você, jovem, adulto ou idoso(a), que por tantas vezes ouviu seu pai, mãe, avô, avó, tio, tia que “em briga de marido e mulher, ninguém põe a colher”, o que fazer agora?

Você pode ajudar a combater a violência doméstica de formas simples, mas extremamente poderosas: ouvindo, acolhendo e não julgando. Muitas mulheres têm medo de denunciar por vergonha, dependência financeira ou por não se sentirem amparadas. Oferecer apoio emocional, orientar sobre os canais de denúncia existentes e, quando possível, acompanhar a vítima até uma delegacia da mulher pode fazer toda a diferença.

Além disso, denunciar situações que você presencia, reprovar comportamentos agressivos e grosseiros de seus amigos e defender suas amigas quando possível são atitudes fundamentais. Agora que você sabe que a vítima não precisa necessariamente denunciar para que a Justiça comece a agir, você mesmo pode fazer isso. E não podemos esquecer do papel essencial da educação: é dentro de casa que se formam os valores que moldam o cidadão. Ensinar os filhos, desde pequenos, sobre respeito, empatia, igualdade e solidariedade é uma das formas mais eficazes de romper com o ciclo da violência. Lembre-se: seu silêncio pode ser cúmplice, mas sua voz — e seu exemplo — podem salvar vidas.



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